Trombetas do caos

Há alguns dias fiquei sabendo que um grupo de adolescentes do meu círculo se reuniu para experimentar “chá de lírio”. Trata-se de alguma planta do gênero Datura, também chamada de “trombeta” pela forma de sua flor. Essas plantas produzem certos alcalóides, moléculas orgânicas que frequentemente apresentam efeitos tóxicos. Neste caso, os alcalóides hisciamina, escopolamina e atropina são bastante empregados em medicamentos pelo seu efeito anti-colinérgico. Eles inibem uma enzima chamada acetil-colinesterase, responsável por quebrar a molécula acetil-colina, um neurotransmissor. A inibição da acetil-colinesterase provoca desde o alívio de sintomas de náusea e vômito, passando por taquicardia, alucinações psicóticas, até a morte. Enfim: não é exatamente uma “magic bullet” (bala, projétil mágico, expressão usada quando queremos dizer que algo é muito preciso no alvo atingido).
Sendo assim, essas plantas são altamente tóxicas e seu efeito alucinógeno tem sido utilizado por diferentes culturas ao longo da história da humanidade. Em outros tempos, eram usos rituais ligados a procedimentos religiosos. Hoje, não deixam de ser rituais, mas ligados a ritos de passagem mais sombrios.
Tenho certeza de que os adolescentes do caso que me foi relatado não eram totalmente inocentes quanto aos efeitos e ação desta droga. Vêm de escolas da elite intelectual, entre seus pais encontram-se inclusive biólogos e são jovens inteligentes e cultos.
Eles obtiveram a planta, fizeram o chá e tomaram na casa de um deles. Os pais não estavam. O efeito foi forte. Os três respoderam pesado. Muito fortemente. Tiveram as esperadas alucinações psicóticas e, quando os adultos da casa chegaram, encontraram os três jovens passando muito mal. Os outros pais tiveram que ser acionados.
Os dois visitantes foram levados por seus pais. Um deles passou a noite com alucinações, com um adulto do lado ajudando a diferenciar objetos reais de imaginários.
O terceiro adolescente não se recuperou. Pelo que sei, continua em estado alterado, sei lá que diagnóstico foi dado. O fato é que continua funcionando psicoticamente.
O efeito esperado de uma intoxicação forte pode durar até três dias. Passado este tempo, trata-se de um efeito mais grave, relatado na literatura médica frequentemente.
Os meninos sabiam que isso podia acontecer? Com certeza! A “lenda urbana” do fulaninho que tomou chá de lírio e nunca “voltou” faz parte do imaginário do “jovem cabeça” desde a minha adolescência.
E por que tomaram, então, desafiando a morte e – muito pior que isso – a sanidade mental?
Para responder, vou contar minha própria experiência com isso. É ridícula, mas ilustrativa.
Eu também fui uma adolescente e jovem adulta muito drogada. Tomei mais ou menos de tudo e, em algumas coisas, fui bastante fundo. Aos 17 anos, tomava bastante coisa: os óbvios álcool e maconha, mas também drogas de farmácia, como diazepam, e cogumelo (psiloscibina). Um dia, meus amigos e eu ficamos sabendo sobre “chá de lírio”. Parecia bom e fácil demais: era um efeito “muito loko” e uma planta facílima de arrumar! Como as ruas não estavam repletas de malucos em delírio, com a quantidade de lírios que víamos pela cidade? Devia ser porque todos eram idiotas e nós eramos muito espertos. Fomos para a casa de uma amiga, saímos pela rua e coletamos muitos “lírios brancos” (que não têm nem uma remota relação taxonômica com as plantas do gênero Datura). Lírios. Brancos. Não daturas. Fizemos o maldito chá e tomamos. Esperamos a tarde toda, fumamos maconha para não perder a viagem, comemos ovos e tomate – enfim, ao contrário de nossas expectativas, foi uma tarde light.
Sim, é uma história ridícula. Mas poderia não ser! A atitude estava lá! Se alguém nos tivesse oferecido a planta verdadeira, as daturas, teríamos tomado alegremente da mesma forma que traçamos os inocentes lírios ornamentais.
Eramos todos estudantes do colégio Equipe, onde se concentrava parte do creme-de-la-creme da intelectualidade paulistana. Não eramos idiotas e, para nossa idade, eramos o que podia haver de bem-informados. Sabíamos dos riscos ou pelo menos podíamos avaliar.
A explicação mais comum para esse comportamento é o imediatismo juvenil, uma atitude caracterizada pelo desprezo pelas consequências dos atos presentes. O jovem se sentiria invulnerável, todo-poderoso e a morte é uma abstração inapreensível.
Essa é uma explicação. Serve também para explicar porque eles transam tão frequentemente sem camisinha, apesar da divulgação sobre o perigo da AIDS.
No entanto, acho que existe mais coisa por baixo disso. Entendo a AIDS e a camisinha: ninguém morre fulminado por AIDS assim que enfia o pau num(a) contaminado(a). É algo para um futuro fora do alcance da imaginação imediatista do jovem.
Mas e drogas?
Acho que é diferente.
Os jovens não brincam de roleta-russa com a mesma frequência que usam drogas psicoativas letais. Eu acho que esse último uso está relacionado com um tipo de ilusão ingênua de que, no fundo, temos poder sobre o cérebro e seu funcionamento. Fora do cérebro, tem “eu”, e “eu” comando o cérebro – esteja ele intoxicado, doente, ou não. Eu estou fora do meu cérebro e mando nele.
Cheguei a esta suposição porque meu melhor amigo brincou com a idéia de demonstrar para mim que era possível ter controle sobre certas emoções negativas tomando, voluntariamente, algo que provocasse as mesmas (depressão, ansiedade, surtos psicóticos), e suprimindo seus efeitos. Minha reação foi violenta: fiquei MUITO brava com ele. Deixei claro que ele tinha me provocado medo (porque amo esse amigo) e que eu ficaria muito, muito puta se ele sequer pensasse em fazer algo assim. Não sei se ele entendeu por que eu reagi dessa forma.
Para isso, ele teria que saber que a menininha de 17 anos que comeu flores inócuas cresceu para se tornar uma adulta seriamente afetada por desordens e sofrimento mental. E que foi submetida a todo tipo de tratamento medicamentoso possível, sem nenhum efeito realmente efetivo. Mas as drogas que tomei me mostraram do que somos feitos, todos nós: sinalização química inter-sinaptica, seja ela mal ou bem-comportada. É isso. Ponto final. As coisas que médicos me prescreveram fizeram as mais variadas festas nessas sinalizações. Perdi o controle motor, perdi acuidade visual, perdi memória, meu pensamento se distorceu para todos os lados possíveis, mergulhei nos mais profundos infernos que um ser humano possa imaginar através dessa drogas: Zyprexa, Trileptal, Geodon, Topamax, Serzone, todos os possíveis benzodiazepínicos do universo e dezenas e dezenas de outros neurolépticos, controladores de humor, anti-convulsivantes, anti-depressivos e narcóticos.
Alguém pode dizer que nenhuma dessas drogas provoca prazer. Que é natural que eu tenha horror a elas, mas que as drogas recreativas são “do bem”, dão barato e depois vão embora.
Não me convence muito, não. No fundo, tudo isso entra lá na sede do tal “eu”, bagunça a sinalização química inter-sinaptica e aí… Quem é “eu”? Em geral, ainda sobra um tanto de “eu”. Um “eu” bem atrapalhado, quimicamente poluido, mas está lá. Se der azar, não sobra – são os tais que nunca “voltam”.
A moral da história é que não existe esse “eu” separado do “meu cérebro”. A sede desse “eu” é o cérebro, que, se estiver intoxicado, já era. Na base da porrada, eu aprendi a respeitar o meu. Acho que é preciso um pouco mais de humildade, baixar a bola e parar de separar corpo e mente. O cérebro é ambos…

Marilia


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