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(continua de “Você está pronto? Talento, preparação e prontidão competitiva” – )
Esporte – o talento
Desde que o esporte se tornou uma atividade com importância estratégica e comercial, a otimização do sucesso competitivo recebeu grande atenção. O foco das estratégias de otimização esteve, no início, no talento. Duas abordagens emergiram imediatamente: a observação do sucesso “em ação” e as tentativas de encontrar o talento antes que o atleta tenha oportunidade de expressá-lo em jogo.
A observação do sucesso “em ação” até hoje tem uma grande importância. Uma expressão dela são os “olheiros” que visitam as escolas americanas observando treinos para encontrar potenciais jogadores. Esta abordagem também foi chamada de “seleção natural”, uma vez que se exime de interferir (ou estudar) os inúmeros fatores que determinam a presença do atleta naquele esporte específico que está sendo observado. Uma vez lá, seu talento será observado.
É inegável que esta estratégia funciona, funcionou e sempre funcionará.
A pergunta que nunca quis calar é: por que o atleta está lá? Por que ele é tão bom lá?
As primeiras respostas que esta pergunta respondeu nos parecem hoje no mínimo ingênuas. Olhando uma turma de garotos jogando basquete, ficou claro que os mais altos se destacavam. Assim, a era da triagem antropométrica se instaurou. Crianças eram avaliadas quanto ao seu “talento” esportivo com base nas medidas antropométricas e possivelmente algum teste físico básico. Os pequenos e flexíveis eram direcionados à ginástica olímpica, os altos para o basquete. Talento era “genética para leigos”, ou seja, fenótipo.
Com a evolução da pesquisa em identificação, seleção e triagem de talentos esportivos, cada vez mais bem financiada pelas potências em guerra (fria e olímpica) e, mais recentemente, pelos enormes interesses comerciais em jogo, novos critérios foram acrescentados. A seleção “científica” de talentos agora inclui testes psicológicos padronizados. A seleção de atletas baseada nestes critérios mais detalhados foi chamada de “detecção de talentos”, em oposição às técnicas mais simplificadas da “identificação de talentos”.
Os testes psicológicos padronizados pretendem identificar atitudes e comportamentos do indivíduo que o tornam favorecido em determinadas posições, em determinados esportes.
O argumento em favor destas novas técnicas é que elas seriam mais eficientes, mais baratas e mais bem sucedidas. Todas as formas de identificação de talentos esportivos aplicadas antes mesmo que o potencial atleta conheça seu esporte partem da mesma perspectiva de que o talento é algo que mora dentro do sujeito, em geral, nasceu com ele e que ele e seu esporte foram fisiológica e psicologicamente feitos um para o outro passivamente.
O que todas estas abordagens deixam de lado é a construção coletiva do talento e os elementos afetivos e de história de vida que moldam a relação do indivíduo com aquele fazer em particular, tornando-o especialmente capaz e até mesmo especialmente apto a vencer. Também deixam de lado o papel ativo da escolha e arbítrio do sujeito na expressão da excelência.
A sociedade seria composta de meia dúzia de gênios e milhões de medíocres porque isso é natural, biológico, próprio à espécie. A necessidade desta ordem, a construção dos gênios, a disponibilidade de habilidades valorizadas versus outras desvalorizadas – tudo isso fica opaco dentro de tal perspectiva.
Além de contar a história do talento pela metade, estas técnicas são pouco eficientes para a identificação da prontidão competitiva, que, além de não ser inata, muda com o tempo num mesmo indivíduo.
O que seria talento, então?
A literatura sobre talento não tem muito mais, em denominador comum, que a idéia de que se trata de um conjunto de atributos que permite a expressão excelente de alguma habilidade. Parte da literatura já distingue talento de sucesso esportivo.
Poderíamos falar em talento na ausência de sua expressão concreta? Haveria um “talento futebolístico” encarnado em alguém que nunca viu uma bola em campo? Naturalmente os adeptos da “detecção científica de talentos” dirão que sim. Eu digo que não. Existem capacidades que tornam possível prever como mais ou menos provável que um indivíduo em particular : 1. Exiba boa capacidade de aprendizado motor para certos gestos esportivos; 2. Exiba uma atitude condizente com as demandas daquela prática. Se, uma vez em quadra, no tatame, no tablado, na piscina, aquele indivíduo vai ou não manifestar talento sem a pressão que sua prévia identificação e prognóstico tiveram, é imprevisível.
Creio que é inegável que talento existe. Creio, além disso, que é inegável que, como quase todas as habilidades humanas, ela seja produto da indissociável interação “nature and nurture”. É evidente que a altura do menino do vôlei e a flexibilidade da garota da ginástica são genéticos e ponto final. Mas a expressão das habilidades técnicas envolvidas na execução excelente de um script e o domínio técnico de um repertório motor não são genéticos.
Talento é algo físico, cognitivo, emocional ou cultural? Outra pergunta errada. Estes fatores são rigorosamente indissociáveis na expressão do talento esportivo. O quanto de emocional há no talento de um bailarino, de uma figure skater, de um esgrimista ou de um judoca? O quanto de físico há em tudo isso? O quanto de cognitivo? O quanto de cultural no jogador de futebol, menino pobre de “comunidade” (antes chamada de favela), crescido num meio que vê esta atividade como o grande meio de ascensão social? E o atleta de jogos bascos, movido por que além de orgulho patriótico?
As perguntas mais importantes a se fazer no estudo do talento, me parece, estão mais relacionadas a motivação. Veremos mais tarde que os nós que é necessário desfazer para dar ao atleta controle de sua prontidão competitiva requerem que ele compreenda o melhor possível os componentes de suas motivações intrínsecas e extrínsecas. Estas motivações, no entanto, estavam também presentes na constituição do talento, quando o atleta travou o primeiro contato afetivo e concreto com a prática que viria a compor, aos poucos e cada vez mais, sua identidade.